domingo, 29 de novembro de 2009

A SAGA DE ZUM, O 1/4 - cap.II


Zum parece andar sem rumo pelas ruas movimentadas da cidade. Anda devagar, observando tudo e todos. Os altos prédios parecem causar-lhe alguma admiração, pois pára algumas vezes e fica a observar-lhes olhando para o alto através das lentes espelhadas de seus óculos escuros, o que faz com que alguns transeuntes ao passarem por ele, olhem para cima também.

Ele não sabe, mas eu estou seguindo-o e observando seus passos. Preciso saber a quê exatamente, ele veio à Terra. Porque preciso saber? Curiosidade de criador sobre os desejos de sua criatura, acredito eu.

Ele entra num bar. Boa escolha, é o bar La Cancha . Senta-se no balcão e pede uma água – a única bebida da Terra que ele conhece e acredita ser a principal. Ele não sabe que a bebida mais popular aqui é o álcool. Somos todos alcoólatras. Até mesmo eu, uma lebre. Algumas vezes embriago-me, tornando-me por algumas horas, uma lebre lésbica demasiado humana, que precisa do álcool para relaxar e aguentar o tranco da vida. Mas somente por algumas horas....e de vez em quando...pois na maioria das vezes sou sempre uma lebre lésbica duplamente malhada, e só.

Zum bebe a água gelada. Servida numa taça de vinho tinto, com gelo e rodelas de lima da Pérsia.
O dia está quente. O clima aqui é bem mais quente que em Arcádia. Vejo que ele sente-se renovado após alguns goles. Eu continuo observando-o. Estou sentada sozinha, numa mesa transversal ao balcão, conseguindo visualizá-lo de perfil. Ele continua usando os seus óculos espelhados. Eu também estou de óculos. Porém, com lentes de grau levemente escurecidas e com armação de resina marrom. Sinto que estou com uma aparência bastante intelectual.

Continuo observando-o através das minhas lentes enquanto beberico um whisky com água de côco.
Não sei ainda se ele me notou. Penso que ainda não. Uma lebre orelhuda e dentuça, de óculos, sentada num bar, chamaria a atenção de qualquer ser 4/4 terráqueo; porém, de um ser apenas ¼ terráqueo, não tenho tanta certeza. Saber-se-á quantas lebres ele já não viu sentada em bares pelo universo afora, tomando um drinque e aparentemente flertando com ele de modo discreto?

Distraio-me por aguns segundos e, ao retornar minha atenção a ele...pronto! Ele nota-me! Está agora olhando-me fixamente! Estou desconsertada! Criatura e criador se confrontam visualmente!
Sinto que ainda não estou preparada para isso. Preciso de mais álcool! Viro meu copo numa única golada e chamo o garçom. Peço um whisky duplo, no velho estilo caubói. Sou uma velha lebre antiquada, muitas vezes até mesmo conservadora.

Zum pára de olhar-me. Conversa com o garçom e pede uma bebida mais forte, pois recebe um taça fumegante de curaçao blue. Não sei se ele sabe quem eu sou, ou se sabe da minha existência.
Não voltou mais o olhar em minha direção, embora eu continue a observá-lo enquanto ele toma delicadamente sua bebida azul com uma bandeirinha colorida espetada na cereja da borda da taça.

Termino meu whisky, peço a conta, e levanto-me meio zonza da mesa. Passo atrás dele, que não se vira para mim. Vou embora bastante down e de orelhas murchas. Não sei exatamente o porquê. Talvez, ter confrontado tão de perto minha criatura – mesmo que só visualmente, tenha sido muito forte para esta velha lebre lésbica.

Saio do bar e ganho as calçadas quentes e cheias de gente. Ele continua lá, bebendo agora, um malibu com gim. Não o estou mais observando de perto, mas sei que ele puxou conversa com uma bela loira escultural, vestida de vermelho, que acaba de sentar-se no balcão ao seu lado.


(esse cap. é uma homenagem singelíssima e muitíssimo modesta a Kurt Vonnegut! Claro que não chega aos pés do capítulo do livro "Café da manhã dos campeões", o qual foi usado como inspiração para este que você acabou de ler...só quis despretensiosamente "brincar" de ser Vonnegut, a quem muito admiro!)